segunda-feira, 31 de agosto de 2015

UM DESEJO E DOIS IRMÃOS



     Dois príncipes, um louro, e um moreno. Irmãos, mas os olhos de um azuis, e os do outro verdes. E tão diferentes nos gostos e nos sorrisos, que ninguém os diria filhos do mesmo pai, rei que igualmente os amava.
    
     Uma coisa porém tinham em comum: cada um deles queria ser o outro. Nos jogos, nas poses, diante do espelho, tudo o que um queria era aquilo que o outro tinha. E de alma sempre cravada nesse desejo insatisfeito, esqueciam-se de olhar para si, de serem felizes. 
    
    Sofria o pai com o sofrimento dos filhos. Querendo ajudá-los, pensou um dia que melhor seria dividir o reino, para que não viessem a lutar depois da sua morte. 

     De tudo o que tinha, deu o céu para seu filho louro, que governasse junto ao sol brilhante como seus cabelos. E entregou-lhe pelas rédeas um cavalo alado.

      Ao moreno coube o verde mar, reflexo de seus olhos. E um cavalo marinho.
    
     O primeiro filho montou na garupa lisa, entre as asas brancas. O segundo filho firmou-se nas costas ásperas do hipocampo. A cada um, seu reino.


     Mas as pernas que roçavam em plumas esporearam o cavalo para baixo, em direção às cristas das ondas. E os joelhos que apertavam os flancos molhados ordenaram que subisse, junto à tona.              
       Do ar, o príncipe das nuvens olhou através do seu reflexo, procurando a figura do irmão nas profundezas.
     Da água, o jovem senhor das vagas quebrou com seu olhar a lâmina da superfície procurando a silhueta do irmão.
     O de cima sentiu calor, e desejou ter o mar para si, certo de que nada o faria mais feliz do que mergulhar no seu frescor.
    O de baixo sentiu frio, e quis possuir o céu, certo de que nada o faria mais feliz do que voar na sua mornança.
     Então emergiu o focinho do cavalo marinho e molharam-se as patas do cavalo alado.

   Soprando entre as mãos em concha os dois irmãos lançaram seu desafio. Alinhariam os cavalos na beira da areia e partiriam para a linha do horizonte. Quem chegasse primeiro ficaria com o reino do outro.
    – A corrida será longa, – pensou o primeiro. E fez uma carruagem de nuvens que atrelou ao seu cavalo.
     – Demoraremos a chegar, – pensou o segundo. E prendeu com algas uma carruagem de espumas nas costas do hipocampo. 
   Partiram juntos. Silêncio na água. No ar, relinchos e voltear de plumas. Longe, a linha de chegada dividindo os dois reinos.
    Os raios de sol passavam pela carruagem de nuvens e desciam até a carruagem de espumas. Durante todo o dia acompanharam a corrida. Depois brilhou a lua, a leve sombra de um cobriu o outro de norte mais profunda. E quando o sol outra vez trouxe sua luz, surpreendeu-se de ver o cavalo alado exatamente acima do cavalo marinho. Tão acima como se, desde a partida, não tivessem saído do lugar. Galopava o tempo, veloz como os irmãos.
   Mas a linha do horizonte continuava igualmente distante. O sol chegava até ela. A lua chegava até ela. Até os albatrozes pareciam alcançá-la no seu voo. Só os dois irmãos não conseguiam se aproximar. 


    De tanto correr já se esgarçavam as nuvens da carruagem alada, e a espuma da carruagem marinha desfazia-se em ondas. Mas os dois irmãos não desistiam, porque nessa segunda coisa também eram iguais, no desejo de vencer.


    Até que a linha do horizonte teve pena. E devagar, sem deixar perceber, foi chegando perto. A linha chegou perto. E chegou perto.
     Baixou seu voo o cavalo alado, quase tocando o reflexo. Aflorou o cavalo marinho entre marolas. As plumas, espumas se tocaram. Céu e mar cada vez mais próximos confundiram seus azuis, igualaram suas transparências. E as asas brancas do cavalo alado, pesadas de sal, entregaram-se à água, a crina branca roçando já o pescoço do hipocampo. Desfez-se a carruagem de nuvens na crista da última onda. Onda que inchou, rolou, envolvendo os irmãos num mesmo abraço, jogando um corpo contra o outro, juntando para sempre aquilo que era tão separado. Desliza a onda sobre a areia, depositando o vencedor. Na branca praia do horizonte, onde tudo se encontra, avança agora um único príncipe, dono do céu e do mar. De olhos e cabelos castanhos, feliz enfim.

Texto de Marina Colasanti. In: Doze reis e a moça no labirinto do vento. (1999).

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